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CONTO: O medo nos olhos do homem morto

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Por Diogo Monteiro
O cigarro aceso é uma lanterna de afogados, é um apoio, um gancho cravado no escuro da noite. É a ele que me agarro, aqui, da minha janela de observação, cobrindo com a vista os abraços dos muros nos quintais. É uma ronda regular que faço, quando a cidade é calada pela madrugada. Venho aqui e observo o meu subúrbio, numa conversa sem palavras, num afago sem toque, assenhoreando-me de suas histórias.
Lá, a pequena casa de um par improvável – ele, uns 60 anos, ele outro, quase isso – que toda sexta-feira, na alta noite, dão asas a um desusado passa-discos, com músicas que não se usa mais ouvir, acalantos de um amor encolhido de frio. Ali, o lar de uma trindade unida por uma liga invisível. Pai, mãe e filha, cada qual que olhe pela sua janela, esperando reconhecer no além-vidro um chamamento para fora das paredes pesadas demais. Aqui, bem em frente ao meu rosto, com a proximidade incômoda de uns oito metros, o apartamento do louco da rua, conservado ainda vazio desde que ele se matou, no mês passado, como o eco insistente do seu último grito.
Não eram todas as noites em que ele estourava-se a gritar. Não com uivos, lamentos de dor ou saudade, nem com berros de medo. Eram mais, e eu acompanhei algumas destas, discussões exaltadas com o vazio, chamamentos de ajuda. Começava com o apagar de todas as luzes do imóvel, depois o homem acendia uma lanterna e errava pela casa, como se procurasse algo, o facho de luz oscilando nervoso por trás das janelas fechadas. Era quando a lanterna apagava, geralmente neste quarto, cuja vista remete ao lugar em que agora estou, que ele principiava a conversa, composta numa língua estranha, própria, plena de grunhidos e engasgos.
Aos poucos o tom ia subindo em contrariedade, em impaciência, e o homem robustecia a empostação. Primeiro, num tom ameaçador, depois, em frases curtas, gritadas como quem ordena a um cão desobediente que fique onde está, como quem expulsa de casa um visitante. Seguiam-se as pancadas, que eu interpretava como murros nas paredes, depois de objetos caindo ao chão, às vezes, vidro sendo quebrado. E depois, a ausência de respostas do silêncio mais absoluto.
Se esses acessos regulares atestavam a sua insanidade, no trato pessoal ela era imperceptível. Nos inevitáveis encontros nessas ruas, era um homem cordial, embora de poucas palavras e de nenhum convívio com os vizinhos. Mas, até aí, eu também nunca me agradei da intimidade obrigatória que impõe a vida suburbana. Afora seus acessos noturnos, pouca diferença havia entre nós dois. Isso me assustava? Às vezes, nestas minhas vigílias noturnas, nos encontrávamos, cada qual em sua janela. Ele me encarava com o semblante triste, que eu sabia ser um pedido de ajuda lançado com uma corda. Eu fingia não perceber, apressava uma displicente saudação com a mão livre, encerrava o cigarro na metade e me recolhia. O homem permanecia lá, assumindo seu turno na ronda.
O que quer que carregasse, o que escavasse as cavidades da sua cabeça, era muito mais do que podia. Uma hora, ele desistiu. Foi encontrado, dois dias depois do último surto, aparentemente, uma artéria rompida inundou seu cérebro, a pulsação como um Sansão cego, derrubando as paredes do vaso sanguíneo. Um parente distante teria tratado das questões do velório, ao qual eu fiz questão de não comparecer. Seus pertences foram levados, o apartamento trancado para uma incerta locação posterior. O silêncio tornando-se seu único habitante.
Nem tanto. Claro que se criaram as histórias. O trágico sempre se faz perene, e as pessoas apegam-se a ele como a um cigarro numa noite silenciosa. Nas conversas nas filas da padaria ou da farmácia, comentava-se que o apartamento não descansava assim, que, à noite, ouviam-se pequenos barulhos, sussurros, arrastados fios de choro. Falava-se na urgência de uma missa ou intervenções religiosas outras, de acordo com a crença do requerente. Irritavam-me as mentes tacanhas. Agarravam-se ao destino do louco para preencher seus próprios dias vazios, sua estupidez fazia mais barulho que os gritos do meu antigo vizinho.
Assim eu contestava, até uma hora atrás, quando um grito me alcançou durante o sono e, na borda da consciência, escutei a voz do louco falando baixo, no meu ouvido: “Eu não pude protegê-los”. Eu acordei e era todo um latejar.
Deixar-me impressionar pela idiotice geral e vê-la ocupar o meu descanso me irritou profundamente e me jogou para fora da cama, para o meu posto de observação. O cigarro acaba em poucas tragadas e eu me surpreendo olhando fixamente para o apartamento, que alardeia o seu silêncio.
“A luz de um morto não se apaga nunca”, a citação me vem antes ou depois de ver o facho luminoso através da janela de um imóvel vazio? A lanterna transita pelos cômodos como há um mês não fazia. Acende-se na sala, roda paredes e tetos, avançando para o primeiro quarto, às vezes projeta-se para fora do recinto, iluminando uma árvore ao redor. Após sumir por um instante, ela chega ao último quarto, este que fica bem à minha frente. No silêncio pleno, ela agita-se e ilumina o suficiente para que eu possa ver a silhueta que se aproxima da janela.
A princípio, apenas sua forma é discernível, mas aos poucos o seu rosto é clareado pela própria luz que carrega. Separado de mim por oito metros de um ar carregado, o louco da rua sorri para mim. Penso em fechar os olhos, correr, espantá-lo com um grito ou me despedir com a tradicional saudação displicente, mas me encontro preso à sua presença, esquadrinhando cada centímetro do seu rosto retesado, os olhos esbugalhados, as narinas arqueadas, os dentes inteiros à mostra. Só então percebo que não é com um sorriso que ele me saúda.
Seus dentes estão trincados de medo, a luz oscila, indicando que a lanterna treme na sua mão, seus olhos, que viram o lado escondido de tudo, são a expressão de um alerta. Mas não estão, como também primeiro pensei, fixos nos meus. Sua vista passa centímetros por sobre o meu ombro esquerdo e fita, com terror, algo às minhas costas. Somente então escuto a voz que sussurra algo numa língua estranha, atrás de mim.

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CRÍTICA: O Jogo da Invocação (2023)

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O Jogo da Invocação

O ano de 2023 está no finalzinho e grandes lançamentos de terror já foram exibidos. Ou seja, fora raríssimas exceções, os estúdios evitam esta época de dezembro para mostrar o filé. É por isso que não tenham grandes expectativas com mais esta produção chegando aos cinemas nacionais agora. O Jogo da Invocação (All Fun and Games), longa produzido pelos irmãos Russo, responsáveis pelos últimos filmes dos Vingadores, é nada menos do que um slasher sobrenatural.

Na trama acompanhamos uma família que tenta se reerguer depois de ter sido abandonada pelo patriarca. A mãe trabalha em várias coisas e os filhos adolescentes se revezam entre o cotidiano e a responsabilidade de cuidar do irmão mais novo. O pentelho, aliás, é indiretamente responsável pelo que vai acontecer.

Um dia, a caminho de casa, ele encontra uma velha casa (detalhe que a história se passa na cidade de Salém nos dias atuais). Atraído por uma voz sinistra que o incita a pegar uma faca com o cabo feito de ossos humanos, ele se transforma em uma pessoa má. Note o clichê… como o filme se chama “O Jogo da Invocação”, é claro que alguém (no caso, o garoto) será possuído por uma entidade maligna e sairá atrás de sangue fresco.

Olha, pensem num filme feito com o troco do pão… Fazia tempo que não assistia algo tão amador e idiota. Eu sei que não dá muito pra exigir de slashers, mas esse passa do ponto ao quebrar as regras que estabelece o tempo todo. A questão de conveniência do roteiro é usada à exaustão. A produção parece que é de fundo de quintal e tem uns efeitos a la Chapolin, errando até na coloração do sangue.

O elenco conta com rostos famosinhos de séries como Natalia Dyer, de Stranger Things, e Asa Butterfield, de Sex Education, sendo elas o chamariz para essa bomba. Mas para não ser injusto, gostei do ator que faz o papel do irmão mais novo. Tomara que tenha mais sorte em outros projetos.

A direção é praticamente nula e parece que os técnicos e co-roteiristas estavam fazendo o trabalho de qualquer jeito para terminar o filme mais rápido possível. E nesse sentido ainda ajudaram os espectadores já que a produção é bem curtinha e possui apenas 75 minutos contando com os créditos.

Mas assim, sério, o roteiro parece ter sido escrito por alguém do colegial. É uma bagunça completa. No clímax eu já tinha entregue os pontos e só queria que terminasse. Enfim, “O Jogo da Invocação” é algo que deve ser evitado como o diabo foge da cruz. E independente de como se decida assistí-lo, lembre que você estará perdendo um tempo precioso da sua vida.

Escala de tocância de terror:

Título original: All Fun and Games
Direção: Eren Celeboglu, Ari Costa
Roteiro: Eren Celeboglu, Ari Costa, J. J Braider
Elenco: Asa Butterfield, Natalia Dyer, Laurel Marsden e outros

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CRÍTICA: When Evil Lurks (2023)

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When Evil Lurks

O ano de 2023 está sendo cabuloso de bom para os fãs de terror. Faltando apenas 2 meses pra acabar o ano, eu achava que minha lista de melhores já estava definida, até que WHEN EVIL LURKS (Cuando Acecha la Maldad), uma machadada cabulosa vinda da Argentina, pega todo mundo de surpresa.

WHEN EVIL LURKS (QUANDO O MAL ESPREITA em tradução livre) é escrito e dirigido por Demián Rugna (ATERRADOS, 2017), que nos apresenta um cenário sinistro no qual possessões demoníacas não apenas são realidade factual, mas são parte da rotina daquela sociedade. Acompanhamos os irmãos Pedro (Ezequiel Rodríguez) e Jimi (Demián Salomón) que cuidam de uma fazenda. Certo dia, os fazendeiros têm sua paz abalada quando descobrem que o filho da vizinha está possuído e apodrecendo enquanto vivo. Daí pra frente é só desgraça.

Rugna entrega praticamente um road-movie desgracento em que nossos heróis cometem um erro atrás do outro, tipo uma versão maligna de FARGO, a comédia de erros dos irmãos Coen, só que sem a comédia. Com uma direção certeira e extremamente sádica, o cineasta argentino mantém o clima de tensão constante com picos pontuais que, por mais que ele trabalhe muito bem a antecipação de certas situações, consegue pegar a audiência desprevenida. Até quando a pessoa se achar esperta, na verdade está sendo manipulada para pensar assim.

O roteiro de Damián é enxuto e bem amarrado, contando com poucos diálogos expositivos, deixando muito pra imaginação do espectador a respeito do universo apresentado. Não tem textinho nem clip inicial contextualizando. Aqui, o espectador pega o bonde andando e segue recebendo migalhas de informações ao longo de toda jornada maldita. Para tudo isso funcionar, é preciso que as personagens sejam críveis e o elenco se empenhe para isso. Todos do núcleo principal estão muito bem, mas é Ezequiel Rodríguez que pega na mão do público, arrastando todos para a gradual desgraça de Pedro. Aliás, suas ações, aliadas a pitadas de informações, traz julgamentos e dúvidas sobre o caráter do protagonista que enriquece a experiência.

Tecnicamente eficaz, WHEN EVIL LURKS não tem maneirismos e tudo é mostrado de forma crua e franca. Os efeitos práticos são de uma beleza horrenda. Se brincar, dá pra sentir o fedor de um certo possuído em específico. Apesar de muito ser filmado em planos fechados nas personagens, a sensação de que aquela sociedade já vive um inferno na Terra é aos poucos muito bem construída. A fotografia também é sádica até em certos desfoques. A banda sonora, trilha e efeitos, é discreta mas cumpre bem o papel de dar o tom sem serem apelativos. Ou seja, aqui, tudo é arquitetado para causar mal estar.

Há algumas coisas que incomodam durante o longa – nada que estrague a experiência – como as fracas performances do elenco mirim num momento de grande importância, e algumas decisões tomadas por alguns personagens que soam forçadas, principalmente do nosso protagonista, por exemplo. Falando nisso, no meu caso, foi curioso que acompanhar a trágica empreitada de Pedro, me trazia à mente o refrão da música “Meu amigo Pedro” de Raul Seixas me fazendo falar para a tela: Não, Pedro! Eu não quero ir aonde você for.

Demián Rugna é um nome que merece ficar no radar da galera, pois WHEN EVIL LURKS é um filme maligno que fica na cabeça, como se fosse um trauma, e que provavelmente vai se destacar no topo das listas de melhores do ano de muitos fãs de terror, como é o caso deste que vos escreve.

Escala de tocância de terror:

Título original: CUANDO ACEHA LA MALDAD
Direção: Demián Rugna
Roteiro: Demián Rugna
Elenco: Ezequiel Rodríguez, Demián Salomón, Silvina Sabater e outros
Origem: Argentina

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CRÍTICA: Five Nights At Freddy’s – O Pesadelo Sem Fim (2023)

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Five Nights At Freddy’s

Houve um ligeiro ceticismo com a notícia de que a franquia de games “Five Nights at Freddy’s” ganharia uma adaptação para os cinemas. Atualmente, como se sabe, a tendência é tirar leite de pedra de qualquer produto da cultura pop que alcance um grande sucesso, além de fazer com que ele seja ainda mais conhecido para um público maior. A franquia criada por Scott Cawthon, também co-roteirista e produtor do longa, no momento tem um total de 11 jogos.

Five Nights at Freddy’s – O Pesadelo Sem Fim” é mais uma aposta da Blumhouse (responsável pela trilogia mais recente de “Halloween“, por exemplo) em uma franquia de fama e bem estabelecida. Tudo indica o projeto deve fazer um bom número nas bilheterias mundiais, obviamente mais por conta da popularidade dos jogos. O porém é que o projeto não deve ser capaz de empolgar ninguém que não seja fã ou não conheça o video game que o inspirou.

O protagonista é um rapaz azarado chamado Mike Schmidt (Josh Hutcherson), que tem uma irmã pequena para criar, mas não consegue parar em nenhum emprego. Ele aceita uma proposta de trabalhar por cinco noites na Pizzaria Freddy Fazbear, fechada ainda nos anos 80 por conta de histórias envolvendo o misterioso desaparecimento de crianças. Mike passa a entender que há algo de mais estranho acontecendo e que, inclusive, os quatro bonecos robóticos que eram usados para animar o público da pizzaria começam a funcionar sozinhos e não aparentam ser nada amigáveis.

Ok que o “Five Nights at Freddy’s – O Pesadelo Sem Fim” é produzido de olho em um público juvenil, então a censura vai ser mais baixa e a violência muito branda. Só que também não dá para perdoar tanto uma direção que sempre busca fazer o que é seguro, sem ousar em nenhum momento, apelando sempre para os sustos fáceis. Apesar dos ótimos efeitos, os robôs animados que “tocam o terror” (opa) na produção também não conseguem convencer nas cenas de ameaça e a tensão que o filme precisaria ter.

Em termos de roteiro, o buraco é ainda mais embaixo. Os personagens humanos são todos desinteressantes, o que dificulta o envolvimento do espectador. O desenrolar da narrativa é enfadonho e previsível, tanto que é possível identificar o maior vilão do filme com léguas de distância da conclusão. A maneira como o longa explora o trauma do protagonista (é, de novo) chega a ser preguiçosa, servindo apenas para ‘encher uma linguiça’ e inchar a duração. Ficou muito ruim.

Talvez se “Five Nights at Freddy’s – O Pesadelo Sem Fim” tivesse menos personagens envolvidos, não precisasse de uma personagem infantil, e fosse mais claustrofóbico e focado em ser um terror de sobrevivência, o filme funcionasse mesmo com a violência mais leve para o público adolescente. Como está, não passa de nada além de ser algo assistível para quem tiver curiosidade, um filme que apenas existe e é isso.

Escala de tocância de terror:

P.S.: “Willy’s Wonderland – Parque Maldito” guarda muitas semelhanças com “Five Nights at Freddy” e fica impossível de não se lembrar deste filme se você não o assistiu antes. Na dúvida entre os dois, fique com Nicolas Cage vs. os robôs.

P.S.2: Filme visto em Cabine de Imprensa promovido pela Espaço Z no Cinemark Rio Mar Recife.

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